Sobre os assassinatos de Madrid

Lorenz Glatz

Se os enganos se desfazem
Cabe-nos encarar o nada
Como última companhia.
(Brecht)

Duzentos seres humanos foram assassinados nos atentados contra os comboios suburbanos em Madrid, mais de mil ficaram feridos – os políticos de todos os países civilizados expressaram a sua indignação, milhões de pessoas em Espanha e noutros países manifestaram-se pela constituição, pela democracia e contra o terror. A sociedade quer defender a sua ordem, em torno da qual as massas se coligaram em auto-controle democrático. Nação, estado, propriedade, trabalho, são jurados como princípios eternos. Nem os anti-imperialistas constituem excepção – a „luta de libertação nacional“, a própria „resistência islâmica“ são para eles apenas métodos de tornar verdadeiramente válidos os sagrados princípios fundamentais.

Na raiva e no luto mistura-se porém um medo insondável, que vai para além do imediato e plenamente justificado receio de novos atentados. Por um lado desenvolve-se aqui uma nova espécie de terrorismo sobre a Europa, que já não tem qualquer objectivo politicamnete formulável – nem mesmo no sentido de uma finalidade, que ainda fosse realisticamente virada para a fundação de um estado ou para a conquista do poder estatal, na qual estivesse implicado um determinado grupo de pessoas. Em vez de uma brutal mas racional finalidade politicamente limitada, surge a (i)moral-irracional e não delimitável reivindicação de vingança e punição, se não a pura embriaguês sanguinária. „Vós amais a vida, nós a morte“ é dito num video-confissão após os atentados de Madrid, acerca dos quais se diz ainda: „isto é uma resposta aos crimes que haveis cometido no mundo“ – obviamente incluindo quaisquer pessoas sem distinção, até crianças e bébés.

O label dos grupos autores não está de modo nenhum claro. Há não apenas os mais diversos fundamentalistas islâmicos, desde a Al-kaeda até bandidos argelinos, mas também bons cristãos como o exército da resistência do Senhor no Uganda e eminências fascistóides como o autor do atentado de Oklahoma in God’s own country. Os atentados e massacres não visam simplesmente os „imperialistas“ e „infiéis“, também os compatriotas são atirados pelos ares indiscriminadamente, como no midlewest americano, e vizinhos de outra etnia são esquartejados, como no Ruanda. O amoque dos indivíduos atingidos pelas contradições da ordem dominante está no ponto de se estender às forças sociais, cujo afecto congela numa logística impassível.

Isto conduz „por outro lado“ ao profundo choque que o novo terrorismo desencadeia por todo o mundo e agora também na Europa. Tudo aquilo em cuja defesa contra o terror são chamadas as massas (e elas próprias se chamam) é mais duvidoso que nunca. A sociedade do trabalho faz dos companheiros concorrentes, produz desemprego e miséria e torna a agressividade e a depressão o estado de espírito habitual. Os estados tornam-se lojas de self-service para as empresas transnacionais, que já só podem simular a valorização. A democracia revela-se como auto-opressão e estupidificação. O progresso destrói a humanidade e a natureza e a protecção e difusão da freedom and democracy exigem intimidação, espionagem, estado policial, intervenção e ocupação militares, numa medida antes nunca vista. Em resumo: é precisamente o que aqui tem que ser defendido que conduz ao amoque e ao terror, que por sua vez levam a crise social mais longe, de modo que todas as medidas anti-terror (desde a repressão pelo Sr. Bush e Cª até à manobra de evitação do eleitor espanhol) que estão à disposição desta sociedade, a curto ou a longo prazo apenas podem acelerar o processo que causa precisamente aquilo que pretendia evitar. Um sistema hostil à vida como o capitalista a prazo apenas pode trazer o que lhe é inerente: assassinato e aniquilamento.

Em itálico palavras inglesas no original (N. T. )

Publicado originariamente no site da revista Streifzuege (Viena) em 15.03.2004

Tradução de Ana Moura

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